sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Meu avô

Ponte de ferro sobre o Rio Paraíba em Guaratinguetá (SP) - 1960

Em saudade de Jucá Vieira.

Um som de vozes e sussurros

Um movimento abafado

Que não pertencia àquela casa

 

Pela fresta da porta

Pela retina do menino

O avô amparado em seu pijama

 

----------

 

Me lembro mais dos seus gestos

E da sua presença

Do que da sua voz

 

De acordar com a janela sendo aberta

Levantar afobado

De correr para a Rural Willys

 

Me lembro das modas de viola da Rádio Clube

Tocando no rádio do carro com sua telinha prateada

As ruas calçadas com paralelepípedos, o caminho para a escola

 

Me lembro de ajudá-lo a abrir a porta de enrolar da papelaria

De sua garrafinha azul claro

Do seu café com leite de toda as tardes no trabalho

 

Me lembro de vê-lo conferir a prova de impressão

Do valor do serviço bem feito

Do som das prensas e da guilhotina na tipografia

 

Tenho ainda lembranças de muito pequeno, ao seu lado

Entre baldinhos de areia e uma pranchinha de isopor

Numa praia que hoje, de tão diferente, não existe mais

 

Me lembro do cheiro e da cor da tinta verde no portão de madeira, num estilo de porteira

Era casa de seu amigo Thier, na rua do mercado de peixes em Ubatuba

Nunca mais conheci alguém com este nome

 

Da roça, a sensação de frio às 5:15h da manhã, o barro nas botas

As bolinhas de miolo de pão que ele enrolava e carregava nos bolsos para atirar aos peixes 

A espuma do leite morno no curral, ao pé de uma vaca; depois, o gosto quente do mingau de fubá

 

Das minhas refregas com minha avó

Dele, me lembro pedindo calma: - Deixa, deixa...

Ela era a dona da braveza, mas também da ternura

 

Me lembro ainda dos velhos domingos, de esperá-lo ao final da missa da Matriz de Santo Antônio

Me levava de um lado para o outro, um quase quieto, o outro quase em silêncio

Fomos bons companheiros, sem que muito precisasse ser dito entre nós

 

Durante a semana, chegava cedo e dormia com as galinhas, pescando no sofá após o jantar

Acordava por volta das 5h e fazia a primeira barba do dia

Me lembro do cafezinho que passava; levava para minha avó, ainda na cama

 

Após o almoço, de hábito, tomava de um gole uma gema de ovo junto a um bocadinho de vinho do Porto

Uma xicrinha branca; para a saúde, diziam

Cochilava por vinte minutos, fazia a barba de novo e voltava ao trabalho

 

De sua história, sei que estudou até a 4ª. série, mas letrou-se por esforço próprio

Me contaram que, menino, vendia balas no trem para ajudar a família, em Resende, Estado do Rio

Fez isto por toda a vida; sobre ele, ouvia sempre que era um homem bom

 

Tinha modos gentis

E hábitos tão regulares quanto o seu relógio de bolso

Era um homem deslocado do seu tempo, disso eu tinha certeza

 

----------

 

Naquela madrugada, quando o espiei ainda em seu pijama

Amparado no corredor

Sabia que ele não voltaria

 

Tive medo, fiquei em silêncio

Depois, voltei a dormir para fugir da realidade

Do dia seguinte, não tenho lembranças, só lampejos borrados

 

Às vezes, me pego pensando

Se deveria ter aberto aquela porta

E simplesmente o abraçado uma última vez

 

 

2.9.21
Marcelo Vieira Graglia