Em saudade de Jucá Vieira.
Um som de vozes e sussurros
Um movimento abafado
Que não pertencia àquela casa
Pela fresta da porta
Pela retina do menino
O avô amparado em seu pijama
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Me lembro mais dos seus gestos
E da sua presença
Do que da sua voz
De acordar com a janela sendo aberta
Levantar afobado
De correr para a Rural Willys
Me lembro das modas de viola da Rádio Clube
Tocando no rádio do carro com sua telinha prateada
As ruas calçadas com paralelepípedos, o caminho para a escola
Me lembro de ajudá-lo a abrir a porta de enrolar da papelaria
De sua garrafinha azul claro
Do seu café com leite de toda as tardes no trabalho
Me lembro de vê-lo conferir a prova de impressão
Do valor do serviço bem feito
Do som das prensas e da guilhotina na tipografia
Tenho ainda lembranças de muito pequeno, ao seu lado
Entre baldinhos de areia e uma pranchinha de isopor
Numa praia que hoje, de tão diferente, não existe mais
Me lembro do cheiro e da cor da tinta verde no portão de madeira, num estilo de porteira
Era casa de seu amigo Thier, na rua do mercado de peixes em Ubatuba
Nunca mais conheci alguém com este nome
Da roça, a sensação de frio às 5:15h da manhã, o barro nas botas
As bolinhas de miolo de pão que ele enrolava e carregava nos bolsos para atirar aos peixes
A espuma do leite morno no curral, ao pé de uma vaca; depois, o gosto quente do mingau de fubá
Das minhas refregas com minha avó
Dele, me lembro pedindo calma: - Deixa, deixa...
Ela era a dona da braveza, mas também da ternura
Me lembro ainda dos velhos domingos, de esperá-lo ao final da missa da Matriz de Santo Antônio
Me levava de um lado para o outro, um quase quieto, o outro quase em silêncio
Fomos bons companheiros, sem que muito precisasse ser dito entre nós
Durante a semana, chegava cedo e dormia com as galinhas, pescando no sofá após o jantar
Acordava por volta das 5h e fazia a primeira barba do dia
Me lembro do cafezinho que passava; levava para minha avó, ainda na cama
Após o almoço, de hábito, tomava de um gole uma gema de ovo junto a um bocadinho de vinho do Porto
Uma xicrinha branca; para a saúde, diziam
Cochilava por vinte minutos, fazia a barba de novo e voltava ao trabalho
De sua história, sei que estudou até a 4ª. série, mas letrou-se por esforço próprio
Me contaram que, menino, vendia balas no trem para ajudar a família, em Resende, Estado do Rio
Fez isto por toda a vida; sobre ele, ouvia sempre que era um homem bom
Tinha modos gentis
E hábitos tão regulares quanto o seu relógio de bolso
Era um homem deslocado do seu tempo, disso eu tinha certeza
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Naquela madrugada, quando o espiei ainda em seu pijama
Amparado no corredor
Sabia que ele não voltaria
Tive medo, fiquei em silêncio
Depois, voltei a dormir para fugir da realidade
Do dia seguinte, não tenho lembranças, só lampejos borrados
Às vezes, me pego pensando
Se deveria ter aberto aquela porta
E simplesmente o abraçado uma última vez
2.9.21
Marcelo Vieira Graglia