terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Amphipolis


Tudo estava calmo

Um silêncio que de tão calado

Soava irreal e denso

 

Ecos de vozes chegavam

Uns poucos, e distantes

Abafados, ecos

 

Na planície onde haviam lutado como animais ferozes

A poeira se assentava

Os vivos já haviam se retirado

 

Os mortos restavam

Com suas tragédias e seus despojos

O vento, indiferente

Remexia cabelos e farrapos

Iludia os olhos de quem via

Fazendo parecer vida o que só era morte

 

O campo, terra seca e árida, nivelava todos os homens

Valentes e covardes

Filhos e pais

Jovens e velhos

Lúcidos e ignorantes

Amantes e brutos

Todos agora iguais

 

Nas aldeias, nas casas e nas cidades

Já se sabe de quem voltou e de quem ficou

As mulheres se vestem de angústia

Vão buscar os seus

Tudo que está perdido e não pode ser recuperado

Aguarda por elas


domingo, 7 de novembro de 2021

Jardim de Lírios

Os sentidos me atordoam

Do mar vem hoje este ventar

Batendo as janelas e as portas abertas

Trazendo um chamado num punhado de areia branca

 

Atordoado, furo as ondas, me lanço ao mar

Tira o rumo deste meu barco

A sereia e o seu cantar

Vênus que dormiu com a Lua, tão nua

 

Metamorfoseada em mulher

Me namora num jardim de lírios

Seu sussurro mistura rimas e prosas 

Enquanto me puxa ao fundo do mar

O inverno está chegando

O vento sopra forte

Carvalhos, sussurros e histórias

As pedras e o chão em que pisas estão gelados agora

A noite chegou para ficar antes que o sol se fosse

Há tempos os corvos não gritam notícias do Norte distante

 

Os muros de gelo refletem a densa floresta além

Será que monta guarda seu irmão de sangue?

O inverno já está chegando, não há nada mais a fazer

Há sombras e escuridão nos olhos do andarilho

 

Traição e infâmia, tempos sem justiça

Um réquiem para todo seu povo

Há nuvens pesadas no céu

Cais

O barco se perdeu

E não foi na tempestade

Foi em noite estrelada

Navegando distraído

Flutuando sobre as águas

 

Hoje o rumo não se sabe mais qual é

O destino faz as vezes de maré

À deriva entorna a vida

 

Não há porto cais abrigo salvação

Para quem lanterna só derrama escuridão

À deriva entorna a vida

 

Faz apelo lança ao mar uma oração

Num bilhete pede a Deus

Talvez perdão

Pela sina aventureira

 

Come o porto bebe o mar sofreguidão

Queima as velas queima as cordas

Queima a paixão

À deriva fica a vida.

Pega um sonho

Dela já não tinha mais notícias

Só os dias da semana tinham passado

E toda aquela tristeza não cessava

 

Do almoço à sobremesa

Se alimentava de paixão

 

Pegou então um pouco de sonho

Costurou os buracos da vida

Se vestiu com aquela fantasia

E com seus farrapos foi sambar na avenida

 

Num desfile sem juízo

Puxando um samba antigo

 

E quando a quarta-feira lhe pediu

Para tirar a fantasia

Abafar o riso

E voltar à vida

 

Das suas cinzas fez um leito e foi dormir

Para sonhar o seu carnaval

Outono

É outono do outro lado da janela

(Porque esta tarde não tem sol)

Além da moldura quadriculada de madeira e vidro

É outono

 

No agasalho das moças

No casaco do homens

No chocolate quente e na fumaça que sobe dele

Já é outono

 

Nas luzes acesas nos postes às 17:30h

Na expressão de quem passa na rua

É outono

 

Na voz da cantora

Nos quadros em preto e branco do Café Expresso do Oriente

Nos braços cruzados e nos cachecóis enrolados

No ritmo mais lento e reflexivo do tempo

É outono

 

Em tudo que pulsa

Em tudo que sente

Nos aromas que ressentem

O outono chegou

 

8.5.06
Marcelo Vieira Graglia

Poeminha

 Para meu filho Pedro

 

Pedi para meu pai

Um poema de criança

De adulto não servia

Pois queria brinquedo e fantasia

 

Pedi um poema

Que fosse pequeno

Um poeminha

Sem muitas palavras, sem muito segredos

 

Um poema bonito

Com bicicleta, bola e pirulito

 

Pedi para meu pai

Um poema de criança

Que não tivesse medo

Mas só esperança

 

Pedi um poema

Que fosse pequeno

Um poeminha

De muito amor e muito sossego

 

Um poema de paz

Que tivesse uma rua e meus amigos

 

Pedi para meu pai

Um poema de criança

De adulto também servia

Desde que tivesse alegria

 

Pedi um poema

Que fosse pequeno

Um poeminha

E nada mais

 

 

7.10.2003
Marcelo Vieira Graglia

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Meu avô

Ponte de ferro sobre o Rio Paraíba em Guaratinguetá (SP) - 1960

Em saudade de Jucá Vieira.

Um som de vozes e sussurros

Um movimento abafado

Que não pertencia àquela casa

 

Pela fresta da porta

Pela retina do menino

O avô amparado em seu pijama

 

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Me lembro mais dos seus gestos

E da sua presença

Do que da sua voz

 

De acordar com a janela sendo aberta

Levantar afobado

De correr para a Rural Willys

 

Me lembro das modas de viola da Rádio Clube

Tocando no rádio do carro com sua telinha prateada

As ruas calçadas com paralelepípedos, o caminho para a escola

 

Me lembro de ajudá-lo a abrir a porta de enrolar da papelaria

De sua garrafinha azul claro

Do seu café com leite de toda as tardes no trabalho

 

Me lembro de vê-lo conferir a prova de impressão

Do valor do serviço bem feito

Do som das prensas e da guilhotina na tipografia

 

Tenho ainda lembranças de muito pequeno, ao seu lado

Entre baldinhos de areia e uma pranchinha de isopor

Numa praia que hoje, de tão diferente, não existe mais

 

Me lembro do cheiro e da cor da tinta verde no portão de madeira, num estilo de porteira

Era casa de seu amigo Thier, na rua do mercado de peixes em Ubatuba

Nunca mais conheci alguém com este nome

 

Da roça, a sensação de frio às 5:15h da manhã, o barro nas botas

As bolinhas de miolo de pão que ele enrolava e carregava nos bolsos para atirar aos peixes 

A espuma do leite morno no curral, ao pé de uma vaca; depois, o gosto quente do mingau de fubá

 

Das minhas refregas com minha avó

Dele, me lembro pedindo calma: - Deixa, deixa...

Ela era a dona da braveza, mas também da ternura

 

Me lembro ainda dos velhos domingos, de esperá-lo ao final da missa da Matriz de Santo Antônio

Me levava de um lado para o outro, um quase quieto, o outro quase em silêncio

Fomos bons companheiros, sem que muito precisasse ser dito entre nós

 

Durante a semana, chegava cedo e dormia com as galinhas, pescando no sofá após o jantar

Acordava por volta das 5h e fazia a primeira barba do dia

Me lembro do cafezinho que passava; levava para minha avó, ainda na cama

 

Após o almoço, de hábito, tomava de um gole uma gema de ovo junto a um bocadinho de vinho do Porto

Uma xicrinha branca; para a saúde, diziam

Cochilava por vinte minutos, fazia a barba de novo e voltava ao trabalho

 

De sua história, sei que estudou até a 4ª. série, mas letrou-se por esforço próprio

Me contaram que, menino, vendia balas no trem para ajudar a família, em Resende, Estado do Rio

Fez isto por toda a vida; sobre ele, ouvia sempre que era um homem bom

 

Tinha modos gentis

E hábitos tão regulares quanto o seu relógio de bolso

Era um homem deslocado do seu tempo, disso eu tinha certeza

 

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Naquela madrugada, quando o espiei ainda em seu pijama

Amparado no corredor

Sabia que ele não voltaria

 

Tive medo, fiquei em silêncio

Depois, voltei a dormir para fugir da realidade

Do dia seguinte, não tenho lembranças, só lampejos borrados

 

Às vezes, me pego pensando

Se deveria ter aberto aquela porta

E simplesmente o abraçado uma última vez

 

 

2.9.21
Marcelo Vieira Graglia

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Nossa poetisa

 chover a cântaros ou a potes

Em memória de Esther Proença 

Numa sexta-feira é que veio a notícia de sua partida

Faltou um último abraço, uma despedida?

Não sei ao certo, talvez não

Também não sei se haveria festa no céu, ou poesia

Não sei se há céu, confesso

 

Entretanto, inegável, é que houve amor, e muito

E, deste amor, todos bebemos, tanto!

Aos goles, a cântaros

Embriagados pelos risos compartilhados

Pelos afetos, aos montes, transbordados

 

Subíamos montanhas sublimes

Metamorfoseávamo-nos em borboletas

Em passarinhos, em flores, em muitas flores

Nos sentíamos parte de um mesmo jardim

E éramos parte de uma mesma família

 

Iluminados pelo seu sorriso e pelo seu canto

Por suas letras e seus encantos, sua inspiração e delicadeza

Sereia-borboleta, nos enfeitiçou

Sua poesia nos invadiu os poros, os sentidos, a consciência

E em nossas almas, suavemente, se acomodou

 

Mesmo contrariando as impossibilidades

Destes tempos de desencanto e sofrimento

De desajustes e iniquidades

O amor, feito em poesia

Em cada um de nós, ficou.

 

 

23.4.21
Marcelo Vieira Graglia

domingo, 18 de abril de 2021

Fábula do bode que tinha patente

Mistérios Fantásticos: O Bode Vermelho


Parecia até humano, mas era um bode

Bem grande, bem alto

Daqueles que vivem cuspindo, insolente

Seus olhos, claros, azuis; as patas, cascudas

Os pelos, caídos em cima da testa, ensebados

Os tinha como se penteados, de lado

Um bigodinho curto, de certo lhe cairia bem

 

Não falava, claro, afinal, era um bode

Mas, se falasse, sua boca seria um poço de impropérios

Certa vez, invadiu um terreiro onde as roupas secavam ao sol

Suspensas por um varal de sisal, coisa da roça

Atrevido, indômito, pôs-se a chifrá-las, como um alucinado

Tanto fez, mas tanto fez, que acabou embrulhado numa casaca militar

Agora, tinha patente! Era capitão, capitão bode

 

Aquilo lhe subiu à cabeça

Inebriou-se com aquela sensação de autoridade

E de pária exótico, fez-se atraente para outros bichos

Ninguém nunca entendeu bem aquilo

Talvez fosse um fetiche pela casaca

Ou pelas insígnias de capitão

Vai saber, os bichos são bicho esquisito

 

O bode, cada vez mais doido varrido

Um dia se meteu no curral

Onde o gado mascava capim, comia ração, mastigava sal

Aquele rebanho, coisa esquisita, parou todo para olhar o bode

Como se fosse um messias

E bastou um balido daquela criatura estranha

Para o rebanho passar a segui-lo

 

E, assim, ia o bode, na frente

Embrulhado naquele casaco

Mascando e babando verde

Seguido ia por um rebanho de gado demente

Quem passava, estranhava

Ao ver aquela procissão insólita

Afinal, onde já se viu boi e vaca seguir bode?

 

E esta estranheza toda parecia não ter fim

Aonde o bode ia, a boiada atrás seguia

E não adiantava os peões gritarem com o gado

Ou bater nos seus lombos com vara de marmelo

De tudo tentaram, até chicote de couro

Mas, xé, que nada, o juízo da bicharada era é pouco

E os ouvidos todos moucos.

 

Até que um dia, uma peste bovina se instalou nas crias

Uma doença terrível

Não se sabe, até hoje, se aftosa, se raiva, ou se doença da vaca louca

O fato é que muitas reses daquele rebanho, e de muitos outros, por conta do vírus, morriam

O bode, desgraçado, dava de ombros para aquilo tudo: - E daí?

O que lhe aprazia era seu casaco militar e sua patente

Ah, e a adoração que lhe tinha aquele gado todo, disto gostava era muito

 

O gado, coitado, mesmo doente, seguia

Em périplo, tropeçando nos corpos dos que ficavam pelo caminho, seguia

Aquele bode, vez em quando parava, e com o cenho franzido, os encarava

Indolente, com sua cara de louco e seu bafo malcheiroso

Aí então berrava e berrava raivoso

Berrava e balia até cuspir os restos por entre os dentes

Chispava e tremia até mijar nos pelos das próprias pernas, colérico, estrondoso

 

E aquela tragédia, parecia era grega, de tão insólita, dramática, funesta

Parecia um sem fim

Até que um dia, numa curva de estrada, numa encruzilhada do mato dentro, algo muito esquisito aconteceu

Tem gente inté hoje que jura que viu

O capeta em pessoa que bem do lado do bambuzal surgiu

E não se enganem não! Não era saci, nem curupira

Era o sete-pele, o capiroto, o diabão, o coisa-ruim

 

Chegou chegando numa nuvem de fumaça preta, num era poeira, não

O bicho brabo cheirava a enxofre e fedia a cachaça, daquelas ruim mineira

Inté o bode, aquele cornudo que tinha patente, se arrepiou até o último pelo do rabo

E nem bem de susto tinha parado

Foi logo reclamado pelo seu dono, o diabo

Eita bode desgraçado, agora tu me pagas! Tu vais é vortá comigo pro inferno

Porque as brasas e o espeto já estão prontos pro seu churrasco

 

E, assim, o bode malvado finalmente se foi dali

Desaparecido para sempre, numa nuvem preta, num ciclone, num corrupio, puxado pelo capeta

E ninguém ali nunca mais dele tomou conhecimento nem ciência

Na estrada, nem rastro, nem marca, nem pólvora, nem nada

Tinha até gente que duvidava do causo

Até que um dia, o padre, que voltava da missa, zoiudo

Viu no meio do mato uma casaca verde, fez sinal da cruz, rezou, Ave-Maria três vezes!

sábado, 17 de abril de 2021

Como se faz um poema?

 Esther Proença Soares, Author at Fifties+

Para Esther Proença

 

Poetisa, como se faz um poema?

Um poema, meu filho, se faz com pequenas coisas

Faça uma lista das coisas que gosta!

Observe as pequenas coisas do seu dia-a-dia

 

Poetisa, me conta, como se faz um poema?

Veja, meu filho, veja aquele homem na rua

Com sua vara acende os lampiões a gás

Os candeeiros alumiando estas ruas de São Paulo, já molhadas pela garoa

 

Poetisa, me diga, como se faz um poema?

Ouça, meu filho, ouça

O traquear dos vermelhinhos mandados por Getúlio neste ano de 32

Que ora avoam por sobre a cidade, sem que os valentes gaviões de penacho, dos bravos paulistas, qualquer coisa possam fazer

 

Poetisa, poetisa, como se faz um poema?

Cheire, meu filho, cheire

Sinta o perfume das laranjeiras nos pomares frescos da Nove de Julho

Sinta o cheiro do capim-cidreira naquela touceira aqui do sítio

 

Poetisa, poetisa, vovozinha, como se faz um poema?

Prove, meu filho, prove

Se esbalde com esta bela macarronada que mamãe preparou

Não tenha cerimônia, você é de casa!

 

Poetisa, poetisa, vovozinha, professora, como se faz um poema?

Me abrace, meu filho, me abrace

Sinta a minha ternura, toque a minha humanidade

Abrace a vida, meu filho, abrace a vida!

A poesia está nas pequenas coisas, a poesia está na vida.


sábado, 3 de abril de 2021

Canto de Guerra



Escuta

Veja que o vento agora sopra os restos e as lembranças

E o que um dia foi luta, hoje é um pedaço de terra

Hoje é um braço de mar

 

Não espere

Que o tempo lhe conceda alguma coisa mais

Que não seja um resto e uma lembrança

Que o vento misture, como igual, a todas as outras