domingo, 18 de fevereiro de 2024

Agora a chuva veio (em homenagem ao amigo Benito Campos)



Agora a chuva veio 

E veio a chuva

A moiá toda terra e toda gente

Que navega pelos descampados 

Que anda pelos rios 


Toda gente humana 

Todo bicho gente

Todo bicho bicho

Toda gente besta

Toda besta gente


É chuva que móia toda terra fértil 

Móia tudo o que presta 

E tudo o que resta

Móia a comida e móia o lixo

Móia a hóstia e móia a baderna


Eita chuva bendita


Chuva que móia os vivo

E os mortos-vivos

Móia os espritos

Móia os defuntos

E móia as rezas


Eita chuva


Agora a chuva veio 

E veio a chuva

A moiá todo sonho e toda sina

A que está escrita 

E a que não é sabida


Toda sina santa 

Todo santo sonho 

Todo sonho esquiso

Toda sina porca

Toda porca sina


É chuva que móia todo torrão escuro 

Móia tudo o que brota

E tudo que se esconde

Móia o livro e móia a vela 

Móia a semente e móia a terra


Eita chuva bendita


Chuva que móia e tamborila

No metal do telhado do sítio 

E em tudo que pulsa e que sente

Tamborila nos corpos

Tamborila nas mentes 


Eita chuva 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Do fogo

A paixão queimava

Em labaredas lânguidas 

Lambidas insinuantes e sinuosas

Deslizavam e escorriam

Demarcando caminhos do pescoço a virilha


Inebriados

Seus corpos se entregavam à lascívia

Sem contar as horas e sem marcar o tempo 

Sem a pressa corrida do relógio da cidade

Embalados numa dança primitiva


Entrelaçavam suas línguas 

E apalpavam suas partes

Como que para acredita-las

Se tocando a cada instante, que pulsava e tremia

Naquele encontro de corpos e de almas

Naquela festa e naquela orgia 

Ao mesmo tempo gozo e epifania

A rede

A rede se prendia a ganchos amarrados na estrutura de madeira do telhado

Acomodou-se nela sentindo que agora flutuava

A rede como um barco mole sobre águas

Que se moldava sem afundar


Seu corpo livre de quase todo o peso

Sentia-se ao mesmo tempo leve e relaxado

A chuva tamborilava aqui e escorria acolá

Numa espécie de sinfonia hipnótica


Aos poucos desprendia-se de tudo o que o levara até ali

As ansiedades, as materialidades, as vissitudes, os devaneios, a alienação cotidiana

Devagar imergia e se amalgamava àquelas matas, àqueles morros, àquelas terras

Como se a tampa de uma pia gigante, que removida, criasse um vórtice que o sugasse de volta


Um ralo que o puxava para dentro dele mesmo

Sugando suas memórias, suas dores, seus sonhos e seu cansaço

Voltava, assim, ao seu avesso, ao seu anverso, ao útero de si, à sua própria gênese

Para quem sabe beber um pouco do seu começo

A pena e o verso

Da pena descia a tinta 

Pena metálica 

Que escorria e molhava 

A folha 

A folha de papel 

 

A pena ultrapassada 

Pena metáfora 

Trocada pela esferográfica 

De plástico, que pena 

É pena desempregada 

 

Que pena da pena 

Tão elegante, vistosa 

Agora, pobre pena 

É pena pobre borrada 

Pena abandonada 

 

Que pena cumpre a pena, coitada 

Relegada ao ostracismo 

Apartada da escrita 

Proibida ao poema 

Que tanto amava 

 

Será que um dia 

Lhe anistiam as penas 

Lhe desatam os nós 

E livre das amarras  

É pena liberta? 

 

Será que então 

A pena se achega ao caderno 

E num volteio seduz a folha 

Ejacula em tinta 

E fecunda o verso?