sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O céu cinza

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Caneta colorida

 

Havia algo de melancólico em seu olhar
E tanta coisa fechada dentro de si que nem cabia
Um pouco daquilo tudo ejaculava pelas pontas coloridas da sua caneta
E tomava formas nas páginas de um caderno

Gostava de observar seus traços em seu silêncio
Os dois se misturando
Um sendo base do outro
Outro sendo insumo de um

Como era difícil acessá-la
O medo de romper a bolha de sabão furta-cor
Que frágil do mundo a protegia 

Havia algo de melancólico em seu olhar
Que só se dissipava quando sorria
Ou quando caminhávamos aos pequenos esbarros
Regalos que me dava em intermitências
Prendas que fingia não ver roubadas

E como dela não extraía qual o sentido
E como seus enigmas insistiam invioláveis
A perscrutava, os olhos, o pensamento
Tentando decifrá-la, capturar seus segredos
Mas a cada investida restava de mãos vazias

Querendo tê-la
Por mais descabida que fosse a razão e o desejo
Disfarçava os próprios olhos e os próprios gestos
Entre desvios e floreios
Entre o querer tocar e o receio

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Elza e Gabriel


Como numa história de García Márques, surgiu do fim do mundo
Inesperada, instigante, misteriosa
Como se atendesse ao seu chamado
Num relâmpago povoou a imaginação do incauto e perturbou o sonho do poeta

Ao som de Elza desceu lentamente e gloriosa as escadarias
Até que seus pés tocassem o seu mundo
Coberto por uma armadura reluzente seu corpo ainda molhado pelas águas do Capitólio
Nos olhos o poder de uma deusa, na mão direita a espada

Sem que tempo houvesse para recuo ou reação
Havia sido perpassado
Sentia o hálito quente de tão próxima
O toque da pele sem ter ainda experimentado
A única certeza é que não mais escaparia dali
O que quer que isto significasse




domingo, 8 de setembro de 2024

Ao final


Depois de tantos sinais 

De tantos avisos 

De tantas súplicas 

De tantas ameaças 

Os ultimatos

As previsões

As maldições

As profecias 


A Terra escancarou sua boca enorme

E dela verteu caudalosa baba

Como se um Rio Amazonas inteiro fosse derramado sobre aqueles campos e morros e alhures 

Reluzente e dourado, denso e malcheiroso


Os olhos que a contemplaram cegaram

Os ouvidos, quase todos surdos, rompidos 

Um bafo de enxofre e calcário queimou narinas e pulmões

O medo congelou corpos e mentes deixando-os estáticos 


A fúria titânica rodopiava e se expandia para além e além

Como uma horda bestial 

Como um exército de milhões marchando intrépido

As lâminas trucidando e ceifando sem piedade 

O ocaso de toda a vida num átimo 


Ali desabaram todos os séculos e séculos

Todos os registros, todos os indícios, todos os testemunhos

 Desapareceram consumidos por labaredas titânicas, inclementes


Quando tudo sobre sua pele havia evaporado 

E nada de orgânico ou vivo restava 

A Terra se engasgou com tal entropia 

E se contorceu num refluxo gástrico

Entre soluços e espasmos

A Terra sofria


Marcelo G

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Agora a chuva veio (em homenagem ao amigo Benito Campos)


Agora a chuva veio 

E veio a chuva

A moiá toda terra e toda gente

Que navega pelos descampados 

Que anda pelos rios 


Toda gente humana 

Todo bicho gente

Todo bicho bicho

Toda gente besta

Toda besta gente


É chuva que móia toda terra fértil 

Móia tudo o que presta 

E tudo o que resta

Móia a comida e móia o lixo

Móia a hóstia e móia a baderna


Eita chuva bendita


Chuva que móia os vivo

E os mortos-vivos

Móia os espritos

Móia os defuntos

E móia as rezas


Eita chuva


Agora a chuva veio 

E veio a chuva

A moiá todo sonho e toda sina

A que está escrita 

E a que não é sabida


Toda sina santa 

Todo santo sonho 

Todo sonho esquiso

Toda sina porca

Toda porca sina


É chuva que móia todo torrão escuro 

Móia tudo o que brota

E tudo que se esconde

Móia o livro e móia a vela 

Móia a semente e móia a terra


Eita chuva bendita


Chuva que móia e tamborila

No metal do telhado do sítio 

E em tudo que pulsa e que sente

Tamborila nos corpos

Tamborila nas mentes 


Eita chuva 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Do fogo

A paixão queimava

Em labaredas lânguidas 

Lambidas insinuantes e sinuosas

Deslizavam e escorriam

Demarcando caminhos do pescoço a virilha


Inebriados

Seus corpos se entregavam à lascívia

Sem contar as horas e sem marcar o tempo 

Sem a pressa corrida do relógio da cidade

Embalados numa dança primitiva


Entrelaçavam suas línguas 

E apalpavam suas partes

Como que para acredita-las

Se tocando a cada instante, que pulsava e tremia

Naquele encontro de corpos e de almas

Naquela festa e naquela orgia 

Ao mesmo tempo gozo e epifania

A rede

A rede se prendia a ganchos amarrados na estrutura de madeira do telhado

Acomodou-se nela sentindo que agora flutuava

A rede como um barco mole sobre águas

Que se moldava sem afundar


Seu corpo livre de quase todo o peso

Sentia-se ao mesmo tempo leve e relaxado

A chuva tamborilava aqui e escorria acolá

Numa espécie de sinfonia hipnótica


Aos poucos desprendia-se de tudo o que o levara até ali

As ansiedades, as materialidades, as vissitudes, os devaneios, a alienação cotidiana

Devagar imergia e se amalgamava àquelas matas, àqueles morros, àquelas terras

Como se a tampa de uma pia gigante, que removida, criasse um vórtice que o sugasse de volta


Um ralo que o puxava para dentro dele mesmo

Sugando suas memórias, suas dores, seus sonhos e seu cansaço

Voltava, assim, ao seu avesso, ao seu anverso, ao útero de si, à sua própria gênese

Para quem sabe beber um pouco do seu começo