Parecia até humano, mas era um bode
Bem grande, bem alto
Daqueles que vivem cuspindo, insolente
Seus olhos, claros, azuis; as patas, cascudas
Os pelos, caídos em cima da testa, ensebados
Os tinha como se penteados, de lado
Um bigodinho curto, de certo lhe cairia bem
Não falava, claro, afinal, era um bode
Mas, se falasse, sua boca seria um poço de impropérios
Certa vez, invadiu um terreiro onde as roupas secavam ao sol
Suspensas por um varal de sisal, coisa da roça
Atrevido, indômito, pôs-se a chifrá-las, como um alucinado
Tanto fez, mas tanto fez, que acabou embrulhado numa casaca militar
Agora, tinha patente! Era capitão, capitão bode
Aquilo lhe subiu à cabeça
Inebriou-se com aquela sensação de autoridade
E de pária exótico, fez-se atraente para outros bichos
Ninguém nunca entendeu bem aquilo
Talvez fosse um fetiche pela casaca
Ou pelas insígnias de capitão
Vai saber, os bichos são bicho esquisito
O bode, cada vez mais doido varrido
Um dia se meteu no curral
Onde o gado mascava capim, comia ração, mastigava sal
Aquele rebanho, coisa esquisita, parou todo para olhar o bode
Como se fosse um messias
E bastou um balido daquela criatura estranha
Para o rebanho passar a segui-lo
E, assim, ia o bode, na frente
Embrulhado naquele casaco
Mascando e babando verde
Seguido ia por um rebanho de gado demente
Quem passava, estranhava
Ao ver aquela procissão insólita
Afinal, onde já se viu boi e vaca seguir bode?
E esta estranheza toda parecia não ter fim
Aonde o bode ia, a boiada atrás seguia
E não adiantava os peões gritarem com o gado
Ou bater nos seus lombos com vara de marmelo
De tudo tentaram, até chicote de couro
Mas, xé, que nada, o juízo da bicharada era é pouco
E os ouvidos todos moucos.
Até que um dia, uma peste bovina se instalou nas crias
Uma doença terrível
Não se sabe, até hoje, se aftosa, se raiva, ou se doença da vaca louca
O fato é que muitas reses daquele rebanho, e de muitos outros, por conta do vírus, morriam
O bode, desgraçado, dava de ombros para aquilo tudo: - E daí?
O que lhe aprazia era seu casaco militar e sua patente
Ah, e a adoração que lhe tinha aquele gado todo, disto gostava era muito
O gado, coitado, mesmo doente, seguia
Em périplo, tropeçando nos corpos dos que ficavam pelo caminho, seguia
Aquele bode, vez em quando parava, e com o cenho franzido, os encarava
Indolente, com sua cara de louco e seu bafo malcheiroso
Aí então berrava e berrava raivoso
Berrava e balia até cuspir os restos por entre os dentes
Chispava e tremia até mijar nos pelos das próprias pernas, colérico, estrondoso
E aquela tragédia, parecia era grega, de tão insólita, dramática, funesta
Parecia um sem fim
Até que um dia, numa curva de estrada, numa encruzilhada do mato dentro, algo muito esquisito aconteceu
Tem gente inté hoje que jura que viu
O capeta em pessoa que bem do lado do bambuzal surgiu
E não se enganem não! Não era saci, nem curupira
Era o sete-pele, o capiroto, o diabão, o coisa-ruim
Chegou chegando numa nuvem de fumaça preta, num era poeira, não
O bicho brabo cheirava a enxofre e fedia a cachaça, daquelas ruim mineira
Inté o bode, aquele cornudo que tinha patente, se arrepiou até o último pelo do rabo
E nem bem de susto tinha parado
Foi logo reclamado pelo seu dono, o diabo
Eita bode desgraçado, agora tu me pagas! Tu vais é vortá comigo pro inferno
Porque as brasas e o espeto já estão prontos pro seu churrasco
E, assim, o bode malvado finalmente se foi dali
Desaparecido para sempre, numa nuvem preta, num ciclone, num corrupio, puxado pelo capeta
E ninguém ali nunca mais dele tomou conhecimento nem ciência
Na estrada, nem rastro, nem marca, nem pólvora, nem nada
Tinha até gente que duvidava do causo
Até que um dia, o padre, que voltava da missa, zoiudo
Viu no meio do mato uma casaca verde, fez sinal da cruz, rezou, Ave-Maria três vezes!