domingo, 18 de abril de 2021

Fábula do bode que tinha patente

Mistérios Fantásticos: O Bode Vermelho


Parecia até humano, mas era um bode

Bem grande, bem alto

Daqueles que vivem cuspindo, insolente

Seus olhos, claros, azuis; as patas, cascudas

Os pelos, caídos em cima da testa, ensebados

Os tinha como se penteados, de lado

Um bigodinho curto, de certo lhe cairia bem

 

Não falava, claro, afinal, era um bode

Mas, se falasse, sua boca seria um poço de impropérios

Certa vez, invadiu um terreiro onde as roupas secavam ao sol

Suspensas por um varal de sisal, coisa da roça

Atrevido, indômito, pôs-se a chifrá-las, como um alucinado

Tanto fez, mas tanto fez, que acabou embrulhado numa casaca militar

Agora, tinha patente! Era capitão, capitão bode

 

Aquilo lhe subiu à cabeça

Inebriou-se com aquela sensação de autoridade

E de pária exótico, fez-se atraente para outros bichos

Ninguém nunca entendeu bem aquilo

Talvez fosse um fetiche pela casaca

Ou pelas insígnias de capitão

Vai saber, os bichos são bicho esquisito

 

O bode, cada vez mais doido varrido

Um dia se meteu no curral

Onde o gado mascava capim, comia ração, mastigava sal

Aquele rebanho, coisa esquisita, parou todo para olhar o bode

Como se fosse um messias

E bastou um balido daquela criatura estranha

Para o rebanho passar a segui-lo

 

E, assim, ia o bode, na frente

Embrulhado naquele casaco

Mascando e babando verde

Seguido ia por um rebanho de gado demente

Quem passava, estranhava

Ao ver aquela procissão insólita

Afinal, onde já se viu boi e vaca seguir bode?

 

E esta estranheza toda parecia não ter fim

Aonde o bode ia, a boiada atrás seguia

E não adiantava os peões gritarem com o gado

Ou bater nos seus lombos com vara de marmelo

De tudo tentaram, até chicote de couro

Mas, xé, que nada, o juízo da bicharada era é pouco

E os ouvidos todos moucos.

 

Até que um dia, uma peste bovina se instalou nas crias

Uma doença terrível

Não se sabe, até hoje, se aftosa, se raiva, ou se doença da vaca louca

O fato é que muitas reses daquele rebanho, e de muitos outros, por conta do vírus, morriam

O bode, desgraçado, dava de ombros para aquilo tudo: - E daí?

O que lhe aprazia era seu casaco militar e sua patente

Ah, e a adoração que lhe tinha aquele gado todo, disto gostava era muito

 

O gado, coitado, mesmo doente, seguia

Em périplo, tropeçando nos corpos dos que ficavam pelo caminho, seguia

Aquele bode, vez em quando parava, e com o cenho franzido, os encarava

Indolente, com sua cara de louco e seu bafo malcheiroso

Aí então berrava e berrava raivoso

Berrava e balia até cuspir os restos por entre os dentes

Chispava e tremia até mijar nos pelos das próprias pernas, colérico, estrondoso

 

E aquela tragédia, parecia era grega, de tão insólita, dramática, funesta

Parecia um sem fim

Até que um dia, numa curva de estrada, numa encruzilhada do mato dentro, algo muito esquisito aconteceu

Tem gente inté hoje que jura que viu

O capeta em pessoa que bem do lado do bambuzal surgiu

E não se enganem não! Não era saci, nem curupira

Era o sete-pele, o capiroto, o diabão, o coisa-ruim

 

Chegou chegando numa nuvem de fumaça preta, num era poeira, não

O bicho brabo cheirava a enxofre e fedia a cachaça, daquelas ruim mineira

Inté o bode, aquele cornudo que tinha patente, se arrepiou até o último pelo do rabo

E nem bem de susto tinha parado

Foi logo reclamado pelo seu dono, o diabo

Eita bode desgraçado, agora tu me pagas! Tu vais é vortá comigo pro inferno

Porque as brasas e o espeto já estão prontos pro seu churrasco

 

E, assim, o bode malvado finalmente se foi dali

Desaparecido para sempre, numa nuvem preta, num ciclone, num corrupio, puxado pelo capeta

E ninguém ali nunca mais dele tomou conhecimento nem ciência

Na estrada, nem rastro, nem marca, nem pólvora, nem nada

Tinha até gente que duvidava do causo

Até que um dia, o padre, que voltava da missa, zoiudo

Viu no meio do mato uma casaca verde, fez sinal da cruz, rezou, Ave-Maria três vezes!

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